Atacante com faro de gol e de determinação
Meu nome é Mariane Cândido, tenho 22 anos, sou promotora de merchandising e já quis ser jogadora de futebol
Mariane tinha 9 para 10 anos quando perdeu o avô, seu Orlando. "Ele gostava de me ver jogar, sabe? Achava bonito. Foi muito difícil, ele era um avô muito presente, fazia questão de estar perto dos netos. O que eu tenho de tristeza, de algo difícil que eu passei, foi a perda do meu vô", emociona-se. Olha para o lado, tenta disfarçar as lágrimas, olha pros pais que assistem à entrevista a certa distância. Arranca de mim um "me desculpa, não tenho um lenço para te oferecer". Desligo a câmera. Ela seca o rosto com as mãos. Prosseguimos.

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A praça do Derby às 14 horas, na região central do Recife, é um local muito quente. Mariane se deslocou de Moreno, sua cidade, para o tradicional bairro da capital em companhia dos pais. Desde o começo, na marcação da entrevista via WhatsApp, se mostrou disposta a contar a própria história – e foi paciente com as várias mudanças de local sugeridas por mim.
Me reconheceu à distância, enquanto eu montava o tripé e preparava a câmera. Escolhi o banco da praça que fica de costas para a grande fonte, um belo trabalho arquitetônico de Burle Marx.
Peço para ela contar sua relação com o futebol, o começo da história calcada na persistência e na determinação, a infância, as conquistas, os problemas, a desistência, a nova vida e os planos para o futuro. A partir de agora, a palavra é dela.
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Desde pequena, meu pai sempre me incentivou, sempre gostou do meio futebolístico. E eu meio que, por influência dele, fui pelos mesmos gostos, entende? Desde que me entendi por gente já gostava de brincar de bola. E comecei a, nos colégios, participar de interclasses, jogos colegiais e tal, e daí fui desenvolvendo o gosto.
Na medida que o tempo foi passando, tive algumas oportunidades, logo no começo, mas eu ainda era uma criança, não sabia o que eu queria. Se ficava brincando, se investia mesmo. E depois de um bom tempo, comecei a trabalhar na comissão técnica de uma escolinha de futebol, por influência de um primo meu, o proprietário de lá. Eu já tinha algumas experiências com campeonatos. E daí, fui tomando gosto de ficar perto, treinava todos os dias também com o pessoal alguns tipos de passes e jogadas.
Foi então que veio a oportunidade de jogar no Sport Club do Recife. Comecei lá aos 19, só que, no período em que comecei, não deu certo. A questão do investimento que era pouco...
Logo depois veio a chance de trabalhar como promotora de merchandising. Eu estudava na época e, entre largar os estudos para me dedicar integralmente ao futebol, que eu não tava vendo futuro nenhum e não via investimento, e continuar estudando, resolvi abrir mão da bola para começar a trabalhar e sustentar meus estudos.
O começo: calçando as chuteiras e amarrando os cadarços
Foi mais ou menos quando eu tinha de 10 a 11 anos que comecei a realmente me interessar por futebol. Foi na época em já morava em Moreno, mas vim estudar no Recife. O colégio investia em campeonatos escolares. Foi quando comecei a despertar, saindo de algo que fosse apenas prazer para seguir profissionalmente. Mas à medida que o tempo foi passandoTop of Form, eu fui amadurecendo e percebendo que não era tão fácil como uma criança idealiza. Pensava, ao ver jogadoras consagradas no futebol, "pô, eu quero ser jogadora, é disso que eu gosto. Eu quero fazer isso". E meus pais sempre me incentivaram, "se é isso que você quer, vá lá, corra atrás". Comecei a ir aos treinos, comecei a treinar no colégio e tal.
Uma inspiração que sempre tive foi a Marta. Eu, na época em que jogava, a enxergava como uma mulher talentosíssima. Saiu do interior, sofreu muito para chegar onde ela chegou, e que passou por muitos preconceitos também. A força de vontade dela, a determinação dela era maior do que qualquer outra coisa que as pessoas pensassem dela. E hoje ela ainda é uma das mulheres que mais ganharam títulos de melhores do mundo. Independente de se ela se aposentasse hoje, continuaria sendo minha grande inspiração.
A relação com as outras pessoas, quando eu jogava, foi bem complicada no começo. Quando criança, você só quer fazer o que tem vontade. E eu não tinha vontade de brincar de bonequinha, eu queria jogar futebol. Na maioria das vezes, jogava com meninos, porque as meninas não gostavam de futebol. Então, no começo, as pessoas diziam "ah, essa menina é um menino", "só quer estar no meio dos meninos". Mas aquilo nunca chegou a me atingir, até porque, em casa, minha mãe jogava futebol na adolescência dela. Jogava futebol, jogava vôlei. E meu pai também, ele dizia "ah, não, isso é besteira, mulher também joga. É só ver na televisão, não tem problema".
Com toda a base que eu tinha em casa, todo incentivo que eu tinha, isso não me preocupava. Era chato. Na hora eu me chateava, mas procurava não absorver, não trazer aquilo pra mim. Eu preferia escutar meus pais a o que os outros diziam, até a opinião de crianças da mesma idade que eu.
Momento de transição: chuteiras amarradas e firmes no pé
O tempo em que realmente investi no futebol foi quando estava no colégio, jogava pelo colégio, participava dos campeonatos. Em relação aos estudos, na primeira "temporada" de futebol, eu tive dificuldades, reprovei a quinta série. Então minha mãe veio ter uma conversa séria comigo. "Olhe, você quer jogar bola, jogue. Mas estude, você tem que priorizar o estudo, ele em primeiro lugar".
Foi aí que deu aquele estralo, né? Aquela coisa de "tenho que dividir: horário de treinar e horário de estudar". Consegui me organizar para ir treinar e depois ir estudar. Refiz a quinta série, passei e depois não tive mais problemas. Nem em recuperação mais eu ficava.
Atacante: máquina de gols
Eu jogava mais como centroavante. Ficava ali na frente e tal. Como eu tinha... eu tenho um jogo mais duro, chego junto, faço bastante uso do corpo para a proteção da bola, então no campo jogava mais avançada. Chegava para receber as bolas, dava passes e finalizações.

Porém, na quadra, quando comecei a jogar no Sport, passei a atuar como fixa. E como no time só tinha uma canhota e eu chutava bem com as duas, às vezes era escalada de ala-esquerda também. Até que fazia muitos gols, não perdia a oportunidade. No cabeceio eu pecava um pouco.
O grande momento: a passagem do colégio para o futebol do Sport
Como sempre joguei em colégio, eu nunca imaginei jogar em um grande clube, fazer parte de um elenco relevante no Recife. Quando eu tive oportunidade de fazer um teste, foi uma coisa que me marcou muito, fiquei muito feliz, até por ser o clube que eu torço, o Sport. Eu já tinha esse sonho desde pequena, de ser jogadora do Sport. Quando eu passei no teste, fiquei muito feliz por jogar no clube que eu sempre idealizei. Foi o que mais me marcou. Quando eu fiquei sabendo, faltava uma semana para o teste e eu precisava me preparar. Eu ia para a escolinha do meu primo pra correr, pra treinar.
Deixei de ser da comissão para ser aluna da escolinha. Aconselhada pelo meu primo, com cinco dias de treinamento, parei alguns dias para descansar. Não conseguia comer direito, ficava nervosa pensando em como seria o teste. Meu primo tentava me tranquilizar, mandando eu jogar o que sabia e deixando a treinadora avaliar, dormir e comer direito, relaxar a musculatura. Saímos juntos para eu relaxar, fiquei menos pilhada, mas no dia fiquei muito ansiosa. No dia, eu fui trabalhar, depois é que fui fazer o teste. O dia todo fiquei muito nervosa, só ingeri líquidos. Cheguei lá muito ansiosa. Já fui vendo pessoas lá com o material, o próprio time entrando em quadra pra treinar. Coloquei a chuteira e a roupa toda feliz. Teve coletivo, teve treino, aí a treinadora me chamou no canto e perguntou se eu queria ficar, e respondi que sim. Foi uma coisa muito rápida.
No começo, eu era muito calada. Mal falava com as pessoas. No começo, até pra receber o passe das outras pessoas era um problema. Eu era a novata, precisava ainda conquistar o meu espaço ali. Tinha um pessoal que já treinava há anos juntas. Então aquela dificuldade no começo eu já sentia, mas não pensava em desistir. Com o tempo, comecei a conversar mais com o pessoal, me entrosar, viajamos juntas para jogar e conversávamos no ônibus. No desenrolar dos meses que eu fui treinando, elas começaram a me chamar para as peladas fora dos treinos, aí já fui começando a me soltar até em quadra mesmo. Treinei lá de 7 a 8 meses. De amizade mesmo teve Camila e também teve a Elisa, que tem a mesma idade que eu, mora na mesma cidade e me levou pra lá pro Sport e me incentivou bastante.
Um cara que me marcou muito, na época, foi meu professor de educação física, Anderson, que me incentivava muito. Ele dizia que era só eu querer que ele arrumava um teste para mim. Só que eu era criança e não tinha essa noção de que precisava começar a investir cedo. Mas ele me mandava investir, tentar, pegava no meu pé durante as aulas de educação física. No Sport, teve a treinadora Keila, que também era jogadora do clube. Ela tinha uma relação mais profissional de treinadora comigo. Não era um incentivo, como Anderson foi, mas ela identificou as minhas dificuldades e os meus pontos positivos e me deu muitas dicas. Com ela, eu aprendi a usar melhor as minhas qualidades e a camuflar melhor os meus defeitos em quadra.
Convívio: amizades e cotidiano em grupo
A relação com as minhas colegas era uma coisa mais coletivista. Eu era muito controlada em jogo. Ficava na minha, não perdia a cabeça. Quando cometiam uma falta em mim, por mais que grave ou feita de má fé, eu sempre mantinha a calma. No jogo, uma completava a outra.
Fiz poucas amizades, posso contar nos dedos. Acredito que pelo meu jeito, por eu ser mais reservada, calada, e só me abrir com pessoas que realmente se chegavam e mostravam interesse e tal, e me incentivavam também. É muito legal ter uma pessoa do seu lado que te incentive. Uma delas, quando eu fui trabalhar, até me incentivou a não parar, disse que tinha o clube, que eu não precisava sequer ir treinar, nem que fosse para eu só aparecer nos jogos. Só que aí eu comecei a trabalhar e estudar muito, então não conseguia conciliar os estudos com o descanso, e precisei priorizar o que me dava retorno, no caso, o estudo e o trabalho. Tive que abrir mão do futebol.
Incentivo? Quase que nenhum. Teve jogo que a gente tinha saído pra fazer, nós que pagamos o ônibus. Cadê o clube para investir no fardamento e no transporte? Tinha dia que a gente não treinava porque não podia lavar o uniforme o tempo todo. Alunos da escola do meu primo que jogam em categorias de base ganham apenas a passagem para ir e para voltar. Eles se preocupam mais com os juniores, que estão mais próximos do profissional. Você não vê investimento. Eles não ligam, só se preocupam realmente quando é uma base que está perto do profissional, mas na base mais jovem, onde deveria haver um incentivo para as pessoas não deixarem o futebol, não tem investimento.
Muitas vezes, as meninas não iam treinar por falta de passagem. Quem dava passagem para ela eram os amigos. Eu via a dificuldade. Eu não tinha tanta dificuldade assim, meu pai me levava de carro nos primeiros meses, tinha como pagar minha passagem, um lanche, um jantar antes do curso. Mas é uma situação bem precária que o futebol de base pernambucano vive.
Chuteiras penduradas e futuro: Meu nome é Mariane. Anote.
Quando eu tive que desistir, fui contratada para o quadro efetivo na empresa que eu trabalhava e minha carga horária ia aumentar para 8h diárias de trabalho. Tive que parar os treinos. Se eu não ficasse na empresa, iria continuar a jogar e fazer de tudo para ficar lá. Mas, se eu fosse contratada na empresa, teria que abrir mão do futebol. Eu já tinha isso em mente. Quando eu tive que parar, comecei a dizer que precisava estudar. Foi triste eu saber que teria de parar.
Quando cheguei em casa, conversei com meus pais e contei que tinha sido contratada, por isso deixaria o futebol de lado. Como eu tinha o sonho de me formar, de ter inglês e fazer um intercâmbio, precisei priorizar uma fonte de renda, o meu sustento. Eu não podia abrir mão daquilo para viver do futebol. Sem estudo, ninguém chega a lugar nenhum. E se não desse certo? Eu não teria estudado nada. Foi triste no momento, mas eu me conformei, pois não tinha tempo suficiente para me dedicar ao futebol. Fui confortada pelo plano B de me formar no inglês.
Assim que eu saí, houve um boato que o time poderia até acabar. As meninas que treinavam na época hoje em dia nem estão mais lá, foram direcionadas para outros clubes, até por questão da passagem para ir treinar. Soube que a diretoria feminina estava com dificuldades e tal. As meninas foram para outros clubes que tinham a capacidade de manter a bolsa delas.
Desde pequena, eu dizia que queria ser também professora de Educação Física. Se não fosse jogadora, eu queria ser uma profissional de educação física. Trabalhar tanto em academia quanto em treinos funcionais. Eu gosto de esporte, não só de futebol. Estar no meio esportivo sempre foi um hobby pra mim, era algo que eu sentia prazer. Como agora falta um ano para me formar no inglês, eu pretendo fazer um intercâmbio. Na volta, quando tiver 24 para 25 anos, eu começarei a fazer minha graduação em educação física. Meus pais apoiam, sempre apoiaram desde o início, desde que eu pretendia ser jogadora eles apoiaram, mesmo que não ganhasse muito dinheiro.
Eu tinha uma pretensão de ir para o Canadá, passar um ano lá. Assim que eu iniciei o curso de inglês, fui a uma feira canadense e conheci um contato brasileiro que é professor lá há dez anos. Tenho o contato dele até hoje. Só que para ir ao Canadá é um investimento muito alto. Há um mês eu fiquei a par de um programa dos Estados Unidos, chamado "Au Pair", em que você vai prestar serviço para uma família, cuidar dos filhos deles, e eles vão bancar o curso aonde você quiser. Como se fosse a minha família. E o investimento é bem menor, 70% menor do que eu ia investir no Canadá. É algo que eu pretendo fazer até o ano que vem, já tá bem encaminhado o plano.

Aqui no Brasil, eu pretendo fazer Educação Física na Maurício de Nassau. As meninas que jogaram comigo no Sport estudam lá e acham uma faculdade boa, que as pessoas até elogiam o curso de Educação Física. Eu pretendo tentar passar na Federal, mas caso eu não passe, vou para a Nassau.
Agora... eu voltaria. Se eu tivesse a oportunidade de voltar do intercâmbio e jogar, eu voltaria. Teria mais tempo livre. Eu gosto. Não deu certo aqui no Brasil, mas se desse fora, voltaria. Lá fora tem gente que começa aos 20. É tarde, sim, principalmente se for homem. Mas lá fora seria mais fácil, por eles adorarem o brasileiro também. Meus colegas dizem que dá tempo de chegar ainda, de jogar lá fora. Como a concorrência lá fora não é tanta, eles aproveitam ao máximo a jogadora, até não dar mais. Tem menina com mais de 30 anos jogando ainda. Mas, como eu disse, não é meu foco agora. Se eu tivesse a oportunidade, eu voltaria, mas não é o meu objetivo.
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Família como base e inspiração
Desligo a câmera e o gravador e pergunto a Mariane se posso conversar com seus pais para incrementar sua história. Dona Walbete e seu Manoel aguardavam em um banco da praça próximo de onde estávamos, e fomos até lá. "Olá, tudo bem? Como vão os senhores? Eu estava conversando com a Mariane e ela me contou a história toda dela. Agora queria saber de vocês como era sua relação com a vida dela no futebol.
– Bom, a gente nunca foi contra ela gostar de esportes, participar. Muito pelo contrário. Nós fomos incentivadores para ela muito fortes. Eu ia levar, ia buscar [nos treinos e jogos] – conta o pai.
– A gente sempre incentivou porque sempre vemos as habilidades de nossos filhos, né? Eles mostram certas tendências a gostar de algo. Então, ela já gostava de esportes, eu também fui esportista quando era jovem, gostava muito dessa área. Quando vi que ela tinha essa habilidade, e o pai também gosta muito de esporte, a gente cuidou de ela ter alguma oportunidade, começamos a incentivá-la, ela participava dos jogos estudantis – lembra dona Walbete –. O pai dela é um olheiro nato, né? Ele percebe quando a criança tem tendência a um talento, ele sempre olha isso. Viu que ela sabe jogar, que tem bom passe. Mas ela que buscava as oportunidades, a gente incentivava, dava apoio, levava. Sempre tivemos o cuidado com o social também, a questão da educação, de ela ter bons amigos, de estar no meio de pessoas que fizessem bem a ela.
– E como vocês enxergam a Mariane como filha e o futuro dela?
– A gente tá sempre esperando que ela mesma tome as decisões dela. Porque a gente não intervém nisso. Ela é uma menina determinada. Quando ela quer alguma coisa, vai em busca. É uma menina de diálogo, sempre fala com a gente. Partilha com a gente os sonhos dela. Nós estamos sempre prontos a escutar nossos filhos, ela e os outros quatro. Todos são educados do mesmo jeito. Para falar de seus sonhos e a gente pronto para escutá-los.
– Gente, eu queria apenas agradecer. Tudo que Mariane contou não apenas serve como um trabalho legal a ser relatado, mas é uma grande história de vida e que inspira determinação, vontade de levantar a cabeça e de correr atrás. Um abraço para vocês – me despedi, não sem antes de tirarmos umas fotos.
