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Um volante raçudo

- Meu nome é Evandro Seabra, tenho 23 anos, sou recenseador e já quis ser jogador  de futebol

Terceiro maior bairro do Recife, o Ibura ("água que arrebenta", ou "nascente de água", em tupi) é intimamente ligado às águas desde antes de sua fundação. Suas 21 vilas - entre elas, as famosas Unidades Residenciais (URs) - foram construídas pela Companhia de Habitação (COHAB) para abrigar moradores afetados principalmente pela cheia que atingiu a cidade em 1966.

Localizado numa região recortada geograficamente por morros e ladeiras, o Ibura passa por muitas dificuldades. Os alagamentos são constantes nos períodos chuvosos e a população, morando em uma estrutura deficiente, sofre com lama, doenças, transbordamento de canais e deslizamentos.

É nessa região, de 50.617 habitantes e do menor IDH da capital pernambucana (dados do IBGE), que vive o funcionário público Evandro Ricardo Seabra, 23 anos. Morando com os pais na UR 10 desde que nasceu, o rapaz enfrentou marcação cerrada da vida durante o tempo em que alimentou um sonho de infância: se tornar jogador de futebol.

Com seus 1,78m e 80kg, Evandro apresenta um físico padrão, mas intimidável, para a posição de volante. Na aparência, lembra um pouco o lendário Mauro Silva, tetracampeão pelo Brasil em 1994. Questiono se o futebol era parecido. “Não, jamais, que isso...”, responde, rindo timidamente.

O terraço no qual ele recebeu a mim e ao cinegrafista David Costa é amplo, repleto de cerâmicas brancas e algumas pretas, decorado com plantas e uma enorme televisão de tela plana, conectada a um Xbox 360. Observo a jogatina e sorrio, me identificando. “Tem que matar um pouco o vício, né?”, Evandro comenta.

É dito logo o clássico “não repara na bagunça”. De dentro da casa, barulho de uma conversa animada.

- Minha mãe tá com alguém lá dentro.

- Ela não quer conversar com a gente também?

Alguns segundos depois de eu ter ouvido “posso não, menino, tô ocupada!”, ele volta, rindo.

- Acho que você escutou, né?

- Tudo bem, não tem problema.

O “FIFA 2016” estava em um duelo entre Real Madrid e Barcelona. Pergunto se ele sonhou em jogar em algum dos rivais espanhois. “Sempre. Quatro dos meus ídolos - Rivaldo, Romário, Ronaldo e Ronaldinho Gaúcho - jogaram em um dos dois [ou nos dois, no caso do Fenômeno]. Desde pequeno, jogando outros video-games, desejava vestir uma das camisas”.

Nós nos sentamos, um de frente para o outro, e, então, começa a agradável conversa com o ex-volante, agora funcionário público, de discurso reticente e amigável.

Aquecimento

“Aqui em casa, mesmo, tinha umas barrinhas de cano de ferro, que meu pai fez pra mim. A gente jogava aqui toda tarde. Estudava pela manhã e jogava à tarde”, conta Evandro, sobre como foi a relação com o futebol durante a infância.

Tendo sempre estudado no Colégio Movimento Criativo, na UR-05, Evandro era figura conhecida na suburbana e carente, mas particular, instituição de ensino. “’Vandinho’ era aquele menino que pensava o tempo todo em futebol, voltava do recreio completamente ensopado, habilidoso e que todos queriam no time, mas também tirava ótimas notas. Nunca deixou a bola atrapalhar os livros”, diz o filósofo e ex-colega de colégio Marcílio Bezerra Cruz.

“Era jogar bola, velho. 24 horas por dia e sete dias por semana, se pudesse. Sempre jogando bola, sempre se divertindo”, diz o rapaz, quando lhe questionei sobre seu hobby quando pirralho. Sobre os colegas de escola, ele relembra. “Era bem interessante, né? A gente sempre tinha o recreio lá, jogava bola direto, aquela resenha toda. Aquele negócio de tirar time, sempre estar em primeiro... sempre era o primeiro a ser escolhido”.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

- Como foi que surgiu essa tua paixão? Foi a partir desse apoio do teu pai, que construiu barrinhas no quintal?

- Eu acho que é desde novo, é genética mesmo. Sempre gostei de jogar bola, sempre e brincar com a bola, de ficar batendo a bola na parede... às quatro da tarde, a gente ficava aqui reunido na frente de casa, chegava muita gente.

Muitos conhecidos dessa época já seguiam “pelo lado ruim”, segundo Evandro. Mas, nem por isso, ele deixou de jogar com eles. Futebol une todo mundo.

 

Saindo do vestiário para o gramado, a torcida ovaciona

“Nessa época, a gente tinha uns ídolos, né? Tinha um sonho de estar na TV, jogar no clube que você ama, algum clube grande do Brasil ou da Europa. Via Ronaldo, via Ronaldinho, via Romário... a história desses craques aí em Copa do Mundo. Quem é o garoto que não sonha com isso? Era um sonho muito, muito grande que eu tinha”, rememora.

- Teve todo um apoio dos teus pais, teus parentes te apoiaram nesse sonho?

- Tive, tive... tive apoio dos meus pais, principalmente meu pai, que me acompanhava muito, né? Desde novo, assim, quando comecei em escolinha, entrei para jogar em clubes, em campeonatos, me acompanhava sempre. Minha mãe não ia tanto porque ela não é muito do meio, mas sempre me apoiava em casa, sempre tava presente. Meus tios também... minha família em geral sempre apoiou.

Apita o árbitro

“Joguei de volante, de meia também, dependendo do que o professor precisava”, conta Evandro, sobre seu versátil posicionamento entre as quatro linhas.

- Mas em quais jogadores tu se inspirava para jogar futebol?

- Pô, na minha época lá, quando eu era mais novo, eram Ronaldo Fenômeno e Zidane; Rivaldo, que para mim foi o melhor camisa 10 da Seleção, que eu vi jogar; Ronaldinho...; no Sport, tinha Leonardo, que faleceu recentemente. Pra mim era craque, era diferenciado.

- E como foi o teu começo no futebol, nesse mundo de ir para campo, de ir a clubes, de participar peneiras, integrar times de base?

 

- Foi assim... eu comecei na escolinha do Sesi [Serviço Social da Indústria] do Ibura [de Baixo]. Tinha uns outros colegas meus que jogavam em outra escolinha aqui perto, o Palmeirinhas, na época. Só que eu não fui jogar lá, minha mãe preferiu me manter lá no Sesi, por ser mais seguro. Aí fui jogando. Com 13 anos, fui campeão sub-15 do “Iburão”. O treinador da escolinha sempre dizia que iria me levar para o Santa Cruz, mas enrolava, enrolava e não ia. Nessa época, teve uma peneira para ir pro São Caetano (SP). Veio um empresário de fora, eu tinha passado, mas minha mãe não me deixou ir. Talvez por ser filho único, não sei.

 

Apesar de dizer que seus pais sempre o apoiaram no futebol, Evandro conta que eles tiveram que tomar algumas decisões difíceis pelo filho.

- Em agosto de 2006, fui para o Náutico, para a escolinha. Eu me destaquei, e tal, tava com 13 anos ainda. Em janeiro, fui para o time principal da base, tive a oportunidade. Fiquei dois, três anos, fui campeão pernambucano, mas tive um problema com o treinador e saí de lá. Aí fui treinar com dois empresários que me jogaram no Sport, Dario e Gaúcho. Eles tinham tudo acertado comigo para ir jogar no Figueirense (SC), só que meus pais não deixaram eu ir. Aí fui pro interior, joguei juniores, joguei a segunda divisão do Pernambucano... ainda pensei em continuar jogando, mas depois... tinha desistido.

 

Dentro de campo

É um tanto quanto raro, quando criança, optar por jogar mais recuado. Normalmente, a posição que chama a atenção é a de atacante, a mais próxima do gol, da idolatria da torcida, da consagração, da glória. Com Evandro, no começo, não foi diferente. Porém, ele foi se adaptando, indo mais para trás, sem deixar de lado, claro, a vontade de avançar.

“Quando eu era mais novo, queria ser atacante, jogar na frente, fazer gols. Aí, no Sesi ainda, comecei a jogar como meia-direita e tal. No Náutico, fiquei jogando de volante”, conta. Ele reforça que também faz o papel de meia. “Sei marcar e sei jogar, né? Não sou um cara que faz só faz uma função. Por isso me considero [polivalente]”.

- Qual tua principal característica dentro de campo?

- Bom passe, bom chute, virada de jogo, boa marcação, finalização, drible, arrancada... cabeceio também, impulsão.

Com essas características, passei a considerar um pouco menos a comparação física com Mauro Silva e levei mais em conta as semelhanças “boleiras” com Rithely, atual volante do Sport.

- E o que diziam de tu dentro do futebol? Diziam que tu tinha futuro, potencial?

- Muita gente dizia que eu ia chegar, eu também acreditava. Só que, tipo... sabe cabeça de menino novo como é que é, né? Às vezes pensava que já tava lá, que ia dar tudo certo sobre ser profissional, só que... é um passo de cada vez.

A decisão mais difícil

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Evandro afirma que a resolução de abandonar o futebol foi financeira.

- Quando foi que você percebeu que não dava mais? Quando caiu a ficha de “não vou mais jogar futebol”? Teve algum problema, alguma lesão?

- Não, não, graças a Deus nunca tive nenhuma lesão quando jogava. Eu treinava direto, fazia musculação, problema com o joelho nunca tive. Mas... quando vi que não dava foi quando fui para o interior, para Vitória [do Santo Antão, na Zona da Mata pernambucana, a 55km do Recife]. Joguei a segunda divisão de juniores... tava novo ainda, tinha 17 anos. Dava tempo de jogar mais uns três anos ainda, já que o júnior é até os 20 anos. Só que... eu não quis mais. Não tava ganhando dinheiro, tinha que sobreviver, tinha que me sustentar, né?

- E como foi que tua família reagiu a essa decisão?

- Aceitaram... sempre estavam do meu lado, das minhas decisões, de buscar ou largar o futebol, essa carreira. Sempre me deram o maior espaço.

 

Resenha pós-jogo e chuteiras penduradas

“Hoje eu jogo só universitário, pela faculdade em que estudo. Peladas também, times de bairro, sempre jogo todo sábado e domingo. Tem também o video-game, que não deixo, para manter o vício. Quando largo cedo do trabalho, venho jogar. Assisto a alguns bate-bolas na TV, umas resenhas esportivas, assistir a jogo. É só o que posso, né?”, enumera.

 

- E sobre teu time do coração?

- Sempre que posso, acompanho o Sport, fico torcendo.

- Vai constantemente à Ilha do Retiro?

- Caramba, vou te confessar, não sou muito fã de ir a estádio não. Já fui mais à Ilha, ao Arruda, aos Aflitos, mais recentemente à Arena [Pernambuco]. Hoje em dia, nem tanto.

- Sobre os estudos, você falou que faz faculdade...

- É, eu curso Engenharia de Produção na Universo, sou 9º período. Hoje eu penso em fazer outro concurso público, na área de Engenharia, tô visando passar na Caixa [Econômica Federal] e fazer uma pós em Economia, talvez. Se não der certo, na parte de Engenharia de Produção são várias áreas: Planejamento, Produção, Qualidade, Logística...

- Você chegou a estudar em outra área? Alguma outra graduação ou curso técnico?

- Graduação não, mas... faço curso de inglês atualmente, fiz de informática, curso básico em Administração e Empreendedorismo. Pensar no meu futuro, né?

- Ainda sonha com alguma espécie de retorno ao mundo do futebol, mesmo que não seja jogando?

- Acho que atualmente não. Me desiludi demais, acho que futebol tem muita... para falar a verdade, tem muita trairagem, muita sacanagem, e o país tá nessa situação... questão de corrupção não é só na política, tem na vida “normal” também. No futebol tem muito disso.

- Então, para você...

- É por isso que eu aconselho ao menino que tá começando agora a ter a cabeça no lugar, centrado. Porque, às vezes, por mais que a gente conquiste títulos de divisão de base, ganhe tudo, tenha muita moral com os amigos, os treinadores, diretoria, assim como eu tinha também, é bom ter a cabeça no lugar. Ficar com boas amizades, não ter amizades influenciáveis ruins, né?

 

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Nos despedimos de Evandro e de sua família com a impressão e o bom sentimento de que seguir em frente se faz sempre necessário. "Aparece aí para me mostrar o trabalho pronto e a gente tomar uma". Como recusar?

Amigo dos tempos de escola, Marcílio relembra a paixão pelo futebol e as boas notas de Evandro. Foto: Mike Torres
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Trabalho de Conclusão do Curso de Jornalismo

Universidade Federal de Pernambuco

Centro de Artes e Comunicação

Departamento de Comunicação Social - Jornalismo

Créditos

Textos e concepção: Mike Torres

Orientação: Profª Adriana Santana

Audiovisual: Mike Torres, David Costa e arquivos pessoais dos entrevistados

Design e produção do site: Mike Torres

Banca: Profª Adriana Santana, Profª Soraya Barreto e Celso Ishigami

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